Aconteceu no Alto do Bode, no Bairro Autran Nunes, em Fortaleza. Ao armarem a furada lona, logo instalaram a potente radiadora que, entre uma música e outra, anunciava recados de alguém para alguém e as duas maiores atrações do circo: a cabrita Esmeralda, que subia escada, e o palhaço Faísca, “mais imoral do que mão de parteira”.
Todavia, as atrações não sensibilizaram o povo do lugar. Tanto que, na primeira noite, o circo vazio ficou. Passou a semana e nada... Providências teriam que ser tomadas.
O esperto dono do circo, percebendo que um fato novo deveria surgir, pôs-se a pensar e idealizar o novo espetáculo. Após dois dias, concebeu o número que ele mesmo iria realizar e o anunciou pelos quatro cantos do bairro:
- Respeitável público, atenção! Um novo número será apresentado no Gran Circo Internacional Del Rey! Hoje, não mais que hoje à noite, engolirei um animal nativo da região. Sim, o conhecido e reconhecido em todo mundo como o primeiro meio de transporte santo. Aquele que transportou Nossa Senhora, juntamente com o Menino Jesus! Sim, senhoras e senhores, hoje, à noite, engolirei um Jumento!
A novidade voou, se espalhou ligeiro entre os fuxiqueiros e bateu nas oiças das beatas de plantão.
- Vixe, Maria, isso vai ser uma escandilice!
- Uma falta de respeito!
- Vai ser é excomungado pela Santa Igreja...
- Além do mais, já dizia o padre que o jumento é nosso irmão...
- Meu mesmo, não, pode ser é teu!
- Deus me livre!
- Tem nada a ver, não. Agora, eu duvido mui-t-o-tó é que esse cabra consiga engolir o bichim!
- Só vai vendo!
- Então, vamo lá!
E eis o circo lotado à noite! Todos esperavam o desafio. Desafio, sim senhor. Também, prometer engolir um jumento, só vendo para crer! O dono do circo começou a sentir um frio na espinha. Como se sairia dessa?
Os números de apresentações que antecediam ao principal eram poucos, mas, vagarosamente, eram executados conforme ordem da direção circense. O povo já se remexia no poleiro fitando o picadeiro, na verdade um terreiro de chão batido e aguado para evitar a poeira. As vaias, assobios e coiós cobravam insistentemente o esperado acontecimento.
Nessa circunstância, as pálidas luzes se apagaram e reacenderam, focando no centro do picadeiro o jumento, devidamente banhado, perfumado, escovado e decorado com fitas multicoloridas. O artista entrou, trajando uma roupa de toureiro paraguaio, mais para baiano que espanhol. O rufar dos tambores saía das caixas com alto falantes furados e descolados. Então, o artista olhou para o jumento, mediu a palmos largos o lombo do animal, provou a orelha, o rabo do muar, pediu o microfone e revelou:
- Respeitável público, eu havia anunciado que iria realizar o número que consistia no desafio de engolir um jumento. Ocorre que de uma coisa eu não sabia. É que saí de casa desde pequeno e não recordava que tia Zefinha, tia-avó de minha santa e saudosa mãezinha, morava aqui, no Alto do Bode. E não é que eu estive hoje pela manhã em sua casa! Recebeu-me muito bem, porém, serviu-me, adivinhem o que? Vocês nem imaginam, ela me serviu uma coalhada. Não pude recusar enorme gentileza... Bem, queria pedir desculpas a essa valorosa, admirável e compreensível plateia... Estou impossibilitado de realizar o prometido número... Mas justifico! Se tem duas coisas no mundo que não combinam, são: manga com leite e jumento com coalhada!
Muito boa estória. Nossa cultura reacende com esses contos. Parabéns!
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