Por Carlito Lima *
Na anti-véspera de natal Clarice recebeu a carta. Ficou
emocionada ao ler, sentou-se no sofá da sala, sozinha, eram quatro da tarde,
releu várias vezes, em devaneios recordou toda sua vida. Ainda guarda a carta
de Raul.
“Maceió, 23 de
dezembro de 1990
Querida Clarice,
Primeiramente
peço desculpas por lhe enviar uma carta em vez de conversar direto olhando nos
olhos como deve ser. Preferi a escrita para esclarecer situações para evitar
constrangimento entre nós.
Fiquei
emocionado ao vê-la ontem entrar na farmácia com seu filho, nosso encontro
inesperado deu-me forte emoção, revi em segundos um passado feliz de nossa
juventude, um belo casal de namorados cheio de esperanças no futuro e cheio de
amor para dar um ao outro. Ontem conversamos pouco, entretanto, senti em seu
olhar, não sou apenas um ex-namorado de juventude, percebi em sua emoção resquícios
de nosso amor. Ao chegar em casa fiquei a lembrar nossos momentos, o início do
namoro no carnaval de 1970, dançamos, pulamos, quatros dias no Clube Tênis e na
Fênix. Na quarta-feira de cinzas cansados, de ressaca, estávamos felizes. Nosso
namoro durou quase dois anos, fiquei desesperado quando meu pai foi transferido
para o Amazonas. A distância foi cruel. Tomei um porre ao saber de seu
casamento com um carioca. Muitos dias de tristeza, passei a frequentar os
cabarés da cidade. Fui um boêmio conhecido em Manaus. Nesses anos apareceram
moças casadouras, eu terminava deixando-as, tornei-me um solteirão cheio de vícios,
este é o cerne da questão. No fundo, inconscientemente, eu me guardava
esperando você. Confesso, ao saber de sua separação vibrei de alegria, já
estava morando em Maceió, lhe via ao longe, nunca cheguei perto enquanto você
estava casada. Só depois desse encontro inesperado percebi que passei todo esse
tempo esperando você. Tudo que quero no mundo é tê-la em meus braços. Quero me
casar com você, entretanto, dois problemas a resolver.
Primeiro, o
pouco tempo de sua separação, não sei se você terá coragem de enfrentar uma
sociedade patrulheira, hipócrita, castradora, casando-se comigo. O outro problema
é mais difícil. Nesses anos todos de solteirão inveterado, hoje quarentão,
tornei-me viciado na noite, tenho uma fascinação pelas luzes negras e vermelhas
dos dancings, pelos anúncios de gás neon, pelos bares e restaurantes, necessito
tomar minha cervejinha antes de dormir, ou vinho ou uísque. Por tudo isso, querida
Clarice, revelo com toda sinceridade meus pequenos pecados e defeitos.
Esperando por você me acostumei à boemia. Eu me conheço, sei que as noitadas me
farão falta. Depois da confissão, minha proposta é a seguinte: quero me casar
com você, se possível amanhã, quero viver com você pelo resto da vida. Peço que
seja paciente com minha compulsão, meu vício, minha atração irresistível pelas
noites. Quero apenas que me conceda, quando casados, uma noite na semana para
sair sozinho.
Fico
ansiosamente aguardando resposta. Sempre lhe amei, lhe amo, lhe amarei pelo
resto da vida seja qual for a resposta.
Raul.”
Clarice passou dois dias pensando, meditando sem
consultar a amigas ou parentes, sozinha resolveu, no dia de natal respondeu, escreveu
atrás da carta recebida, colocou num envelope, mandou entregar. Raul leu num
fôlego.
“Raul. Espero
que esteja bem, desejo-lhe um Feliz Natal. Sobre sua carta, entendi seu
procedimento em preferir a escrita, entretanto, eu gostaria de ter esse assunto
discutido pessoalmente. Que tal nos encontramos depois da Missa de Natal da
Catedral?”
Raul se preparou, há muitos anos não assistia uma
missa. Logo a localizou, esperou o padre acabar. Depois saíram para um bar para
conversar. Quase três horas de muitas recordações, contaram planos para o
futuro. Quatro meses depois se
casaram, os filhos de Clarice tiveram resistência inicial, hoje, 22 anos depois, são grandes amigos de Raul que, toda
quinta-feira não dispensa, sai para noitada semanal numa barraca ou barzinho até
a hora do retorno ao lar.
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