Por Roberto Aurélio
Lá pelas 8 da noite, quando ainda os garçons arrumavam as mesas e varriam o salão e a calçada do Bar do Anísio, Marçal já estava lá, sentado à mesa, junto à coluna da cumeeira. Meio baixinho, cabeça um tanto enterrada entre os ombros, rosto tisnado, pele esburacada e oleosa, grossas papadas sob os olhos, barba e bigodes irregulares, descuidados, um surrado blazer, talvez bege, um olhar obscuro, que se fixava ao acaso sobre um passante, uma cena de rua, um carro lento, ou sobre o mar, do outro lado do asfalto e do calçadão da Avenida.
Quando ele chegou houve alguma comemoração. "Marçal voltou! O velho Marçal está de volta!" Amigos dos bons tempos saudavam sua chegada, sentavam à sua mesa, puxavam assunto, as novidades do Rio, seu trabalho... Marçal, se convidado, ia para outra mesa, mas quase não falava ou, quando muito, dizia frases truncadas, ininteligíveis. À bem da verdade, não me lembro de ter ouvido dele uma oração completa, com sujeito, verbo e predicado. Eram exclamações deslocadas, aleatórias, a propósito de qualquer coisa ou de coisa alguma, acompanhadas do movimento de tocar a garrafa com o copo, numa espécie de brinde consigo mesmo, ou com um parceiro imaginário.
Nunca o vi chegando ou saindo do Bar do Anísio. Sendo sempre o primeiro a chegar e o último a sair, dava a impressão de presença constante, inamovível, que, se nada acrescentava em matéria de conversação, também a ninguém incomodava com seu silêncio e seus murmúrios.
Seus contemporâneos, de uma geração bem anterior à minha, entre os quais contavam-se músicos, cantores e compositores, saudavam-no sempre com respeito e carinho. Pagavam-lhe bebida e conversavam com ele. Porém Marçal não entrava na sintonia de ninguém e respondia totalmente ao lado, quando respondia, reingressando, logo em seguida, no mutismo habitual.
Certa vez, eu perguntei ao Rodger físico, compositor, cantor e boêmio afinal quem era ou quem teria sido, aquela simpática ruína que se guardava a um canto, nem alegre nem triste, olhar vago sobre o mundo passando, absolutamente alheio à intensa agitação do Bar do Anísio.
Rodger conhecia bem as primeiras levas dos artistas cearenses que, no começo dos anos sessenta, se aventuraram a tentar a vida no Rio, nossa Hollywood, resplandescente, a atrair de forma irresistível os talentos da província para a noite feérica onde, quem sabe, o destino, o sucesso brilharia... E Marçal foi um desses pioneiros. Excelente pianista, era requisitado para as festas mais caras. Exerceu seus méritos no Náutico, no Ideal e em outros ambientes requintados, até ser arrastado pela correnteza de luz neon do Rio de Janeiro.
E, lá, no Rio, Marçal saiu-se bem. Trabalhou em shows, bares, restaurantes, chegou a ensaiar em orquestras e bandas de algum conceito. Ganhou reputação no meio musical e passou a constar da agenda de empresários e agentes. Por fim, conseguiu um bom contrato, como pianista de um restaurante no Leblon. Emprego fixo. Ele agradava ao público, recebia bom salário, boas gorjetas, comia no emprego, era bem tratado, em suma, o êxito e a tranqüilidade.
Em uma certa noite, particularmente movimentada, no entanto, sobreveio o primeiro assalto do pequenino demônio que o iria perseguir até a derrocada final. Marçal tocava Summertime e parou inopinadamente em meio a inspirado improviso. Olhou para o ombro, depois para o teto e chamou o gerente, para reclamar de uma poeirinha que estava caindo exatamente sobre ele. O gerente estranhou. Não era possível. O restaurante acabara de sofrer uma reforma. "Como, uma poeirinha?". De dia, examinou-se o forro, o telhado e estava tudo ok: nem buracos, nem ratos, nada! Não havia porque nem de onde cair poeirinha nenhuma.
Na noite seguinte, outra queixa. A poeirinha continuava caindo, e até mais forte. Novas buscas, em vão. O gerente mandou passar pano úmido no forro e mudar o piano de lugar. Mas, no outro dia, lá se vinha o Marçal, com a história da poeirinha que lhe tirava a concentração. A coisa foi se complicando, o gerente se irritanto, até o desenlace inevitável. Marçal saiu do emprego. Não suportava aquela poeirinha que caía do teto exatamente sobre o seu ombro e o gerente do restaurante, muito menos, suportava as repetidas queixas do pianista quanto a uma poeirinha, que não tinha de onde cair.
Novo emprego em outro bar. E lá, também, a poeirinha caindo no ombro do Marçal. Discussões com o gerente, mudanças de lugar do piano, e tudo o mais, culminando com outra demissão. E Marçal, após tocar em mais de uma dezena de restaurantes, acabou sem encontrar nenhum que o quisesse: A história da poeirinha caindo no ombro, sabe-se lá de onde, ficou conhecida no show business do Rio. Marçal jurava para os amigos que caía sim, uma poeirinha lá do alto, sempre que ele estava tocando, e ele tinha de parar para limpar o paletó. Mas, na penumbra da noite, ninguém via, só ele. E foi essa poeirinha que acabou expulsando o Marçal do Rio de Janeiro e da música. Ele parou de tocar, tomou aversão ao piano e voltou para Fortaleza.
Quando o Rodger acabou de contar a história do Marçal e sua poeirinha persecutória, já amanhecia, na Beira-Mar. No Bar do Anísio, só duas mesas ocupadas, enquanto os garçons, impacientes, arrastavam e empilhavam as cadeiras ruidosamente, com o intuito deliberado de incomodar. Banhistas e ginastas madrugadores já ocupavam a praia e os primeiros praticantes de cooper transitavam no calçadão.
Súbito, animado não sei por que força misteriosa, o Marçal, que estivera toda a noite imóvel, em seu diálogo mudo, ou talvez musical, com a garrafa, levantou-se e, num ímpeto, atravessou a rua, indo ao encontro de um cidadão de seus sessenta e tantos anos, de calção, tênis e boné, que caminhava célere. "Meu Governador! Meu Governador!" exclamou Marçal, em direção ao homem, que, assustado, ao ver aquela figura um tanto andrajosa, de braços abertos, vindo em sua direção, estaca e acaba recebendo um amplexo efusivo do Marçal, sempre aos brados: "Meu Governador! Meu Governador!".
O homem, constrangido, a custo se desvencilha e segue sua caminhada. Marçal volta contrito sobre seus passos, senta à mesa e submerge no seu mundo de silêncio e murmúrios.
O cearense Roberto Aurélio é jornalista, pai de quatro filhos maiores e avô de uma neta.
(Imagem: fotomontagem a partir de fotos do Google)