domingo, 2 de dezembro de 2012

Quintino Cunha, o pai do canelau


Cearense de Itapajé, José Quintino da Cunha (1875-1943) foi um advogado, escritor e poeta cearense. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Ceará em 1909 e, a partir de então iniciou-se no ofício de advogado criminalista. Foi deputado estadual na década de 1910, mas logo abdicou da carreira de político e chefiou a campanha do Bode Ioiô para vereador de Fortaleza, fazendo o animal ter votos suficientes para ser eleito, caso possível fosse.

Quintino Cunha.

Quintino Cunha tornou-se bastante popular por seu estilo irreverente, carismático, e pelas anedotas que contava. É tido como o mais lendário de nossos humoristas literários e o maior de nossos poetas urbanos.

Excêntrico sem ser esnobe, feio, mas cativante, eternamente esquecido, no entanto continuamente resgatado, figura ao lado de grandes mestres do improviso literário ferino, sendo considerado por Agripino Grieco, grande crítico literário carioca,  como "o maior humorista brasileiro de todos os tempos".

Menino, ainda, Quintino Cunha foi convidado a passar uns dias das suas férias na casa de dois coleguinhas de colégio. Convite aceito, viajou até a casa combinada onde deveria hospedar-se por alguns dias, com os convidantes anfitriões. Lá chegando, não encontrou os colegas que haviam viajado para outro destino, sem deixar recado. As tias idosas dos meninos, donas da casa, convidaram-no a ficar e aguardar a chegada dos seus sobrinhos. Quintino não se fez de rogado e ficou, aceitando o convite. À noite não lhe ofereceram jantar e nem café ou almoço no dia seguinte. Matando a fome com as fruteiras do quintal, resolveu ir embora dali e o fez, deixando um bilhete sobre a mesa:

"Adeus casinha da fome.
Nunca mais me verás tu.
Criei ferrugem nos dentes
E teia de aranha no cu."

Já célebre advogado, a fama de Quintino Cunha era grande no Nordeste. Tinha havido um crime no interior da Paraíba, onde pai e filho assassinaram um adversário político. Para defendê-los, convidaram o célebre causídico. Este fez a defesa com muita propriedade conseguindo a absolvição dos réus. A cidade fez festa de comemoração pela semana, hospedando Dr. Quintino no melhor hotel. Sua fama correu rápida por todo o município e o feito atingiu proporções. Daí, surgiu no hotel um humilde casal dos sítios afastados. O marido dirigiu-se ao advogado expondo-lhe o desejo de um desquite, em face dos desentendimentos do casal. Dr. Quintino então perguntou-lhe se este possuía algum bem, alguma propriedade.

- Não doutor, eu nada pissuo e trabalho alugado, em sítios alheios.

Virou-se para a esposa e fez-lhe idêntica pergunta, vindo a resposta:

- Doutor, pra que a verdade lhe seja dita eu ainda tenho menos que ele.

Então, Dr. Quintino respondeu-lhes em versos:

"A questão é muito tola!
Aqui mesmo, eu os desquito.
Fique ele com sua rola
E ela com o seu priquito."

Conhecido e até hoje contado pelos frequentadores da Praça do Ferreira, o causo da defesa do deficiente físico conhecido apenas como Francisco, apelidado de "Chico Mêi Cu", foi uma das mais famosas proezas de Quintino Cunha.

Conta-se que nos idos anos 20, um pobre deficiente físico, sem pai nem mãe, sem eira nem beira, mancava pelas ruas do Centro da pequena Fortaleza, onde fazia os biscates que lhe davam o pouco para o sustento. Encabulado, quieto e calado, aparentava não dar importância ao canelau que mangava à sua passagem: "Chico Mêi Cu!", "Chico Mêi Cu!", "Chico Mêi Cu!". Foram anos de chacotas.

Certa feita, num ato de fúria, Francisco fez uso de uma peça perfil-cortante que transportava, e ceifou a vida de um de seus mais ferrenhos mangadores. Foi detido e de imediato levado à cadeia pública, onde ficou por um tempo aguardando julgamento.

No dia do juízo, atendendo às súplicas dos que rogavam pela libertação de Francisco, em defesa deste, fez-se presente diante do Júri o renomado advogado Quintino Cunha. Após as interlocuções pujantes da promotoria, que exigia condenação com pena máxima para o réu, o Juiz deu a vez da defesa, à qual Quintino deu início:

- Meritíssimo Juiz, Ilustríssimo Doutor Promotor, Respeitabilíssimos Jurados. Em defesa de Francisco eu tenho a dizer que...

Após alguns segundos de pausa, ele repetiu:

- Meritíssimo Juiz, Ilustríssimo Doutor Promotor, Respeitabilíssimos Jurados. Em defesa de Francisco eu tenho a declarar que...

Após os novos segundos de pausa, ele tornou:

- Meritíssimo Juiz, Ilustríssimo Doutor Promotor, Respeitabilíssimos Jurados. Em defesa de Francisco eu poderia falar que...

De pronto o Juiz esbravejou:

- Mas quanta demora! O senhor irá ou não dar início à defesa?!

Quintino replicou:

- Repare só, Meritíssimo: Não faz sequer um minuto que eu só me dirijo a vós de forma respeitosa, e já provoquei vossa inquietação. Agora, imagine Vossa Excelência, o que deve ter passado pelas ideias do pobre Francisco, após todos esses anos de achincalhamento e mangoça pública.

Seguindo, com toda a facúndia e poder de  convencimento que lhes eram peculiares, Quintino Cunha deu continuidade ao discurso de defesa e obteve a absolvição do réu. Saiu do tribunal carregado nos braços por seus amigos, rumo ao botequim mais próximo.

Hoje, a maioria dos cearenses não sabe quem foi Quintino Cunha. Nem mesmo os moradores do bairro que leva o seu nome o conhecem. Por isso, é importante contarmos estas histórias, para que a memória do precursor da molecagem cearense não caia no esquecimento.

Viva a irreverência cearense! Viva Quintino Cunha!

Enviado pela Fernanda Lapovitera.

2 comentários:

  1. Sr. Totonho Laprovitera... Parabéns pela a postagem, continue pois sou fã do blog laprovitera.

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  2. Em um lugar de trocistas por natureza, que de senso comum denominava-se, desde o século XIX, Ceará Moleque, Quintino tornou-se ícone da irreverência, marca registrada do nosso povo.
    Esta alcunha é que batiza o livro em sua homenagem, de autoria de Plautus, seu filho, onde lê-se muitos causos deliciosos como os acima relatados.
    Muito pertinente à nossa identidade e ao resgate dela, esta tua publicação.
    Parabéns!

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