domingo, 24 de junho de 2012

A carta

Por Carlito Lima *



Na anti-véspera de natal Clarice recebeu a carta. Ficou emocionada ao ler, sentou-se no sofá da sala, sozinha, eram quatro da tarde, releu várias vezes, em devaneios recordou toda sua vida. Ainda guarda a carta de Raul.


“Maceió, 23 de dezembro de 1990

Querida Clarice,

Primeiramente peço desculpas por lhe enviar uma carta em vez de conversar direto olhando nos olhos como deve ser. Preferi a escrita para esclarecer situações para evitar constrangimento entre nós.

Fiquei emocionado ao vê-la ontem entrar na farmácia com seu filho, nosso encontro inesperado deu-me forte emoção, revi em segundos um passado feliz de nossa juventude, um belo casal de namorados cheio de esperanças no futuro e cheio de amor para dar um ao outro. Ontem conversamos pouco, entretanto, senti em seu olhar, não sou apenas um ex-namorado de juventude, percebi em sua emoção resquícios de nosso amor. Ao chegar em casa fiquei a lembrar nossos momentos, o início do namoro no carnaval de 1970, dançamos, pulamos, quatros dias no Clube Tênis e na Fênix. Na quarta-feira de cinzas cansados, de ressaca, estávamos felizes. Nosso namoro durou quase dois anos, fiquei desesperado quando meu pai foi transferido para o Amazonas. A distância foi cruel. Tomei um porre ao saber de seu casamento com um carioca. Muitos dias de tristeza, passei a frequentar os cabarés da cidade. Fui um boêmio conhecido em Manaus. Nesses anos apareceram moças casadouras, eu terminava deixando-as, tornei-me um solteirão cheio de vícios, este é o cerne da questão. No fundo, inconscientemente, eu me guardava esperando você. Confesso, ao saber de sua separação vibrei de alegria, já estava morando em Maceió, lhe via ao longe, nunca cheguei perto enquanto você estava casada. Só depois desse encontro inesperado percebi que passei todo esse tempo esperando você. Tudo que quero no mundo é tê-la em meus braços. Quero me casar com você, entretanto, dois problemas a resolver.

Primeiro, o pouco tempo de sua separação, não sei se você terá coragem de enfrentar uma sociedade patrulheira, hipócrita, castradora, casando-se comigo. O outro problema é mais difícil. Nesses anos todos de solteirão inveterado, hoje quarentão, tornei-me viciado na noite, tenho uma fascinação pelas luzes negras e vermelhas dos dancings, pelos anúncios de gás neon, pelos bares e restaurantes, necessito tomar minha cervejinha antes de dormir, ou vinho ou uísque. Por tudo isso, querida Clarice, revelo com toda sinceridade meus pequenos pecados e defeitos. Esperando por você me acostumei à boemia. Eu me conheço, sei que as noitadas me farão falta. Depois da confissão, minha proposta é a seguinte: quero me casar com você, se possível amanhã, quero viver com você pelo resto da vida. Peço que seja paciente com minha compulsão, meu vício, minha atração irresistível pelas noites. Quero apenas que me conceda, quando casados, uma noite na semana para sair sozinho.

Fico ansiosamente aguardando resposta. Sempre lhe amei, lhe amo, lhe amarei pelo resto da vida seja qual for a resposta.

Raul.”

Clarice passou dois dias pensando, meditando sem consultar a amigas ou parentes, sozinha resolveu, no dia de natal respondeu, escreveu atrás da carta recebida, colocou num envelope, mandou entregar. Raul leu num fôlego.

“Raul. Espero que esteja bem, desejo-lhe um Feliz Natal. Sobre sua carta, entendi seu procedimento em preferir a escrita, entretanto, eu gostaria de ter esse assunto discutido pessoalmente. Que tal nos encontramos depois da Missa de Natal da Catedral?”

Raul se preparou, há muitos anos não assistia uma missa. Logo a localizou, esperou o padre acabar. Depois saíram para um bar para conversar. Quase três horas de muitas recordações, contaram planos para o futuro.  Quatro meses depois se casaram, os filhos de Clarice tiveram resistência inicial, hoje, 22 anos depois, são grandes amigos de Raul que, toda quinta-feira não dispensa, sai para noitada semanal numa barraca ou barzinho até a hora do retorno ao lar.

* O alagoano Carlito Lima é ex-capitão do Exército Brasileiro, engenheiro, ambientalista e escritor.

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