domingo, 24 de janeiro de 2016

A macumba da Dona Fátima


Eu morava em João Pessoa, na Paraíba, e estava mais magro do que nunca! Na balança, com o sabonete na mão, pesava uns cinquenta e poucos quilos, no máximo! E para agravar a situação, a minha vida era toda desregulada. Dormia pouco, me alimentava mal e farreava todo o santo dia. Estava em tempo de adoecer.

Dividindo a morada no Edifício Beira Mar com os amigos Toinho, Afonso, Paulo e Helder (o único mais ou menos organizado do grupo), tínhamos como empregada doméstica Dona Fátima, uma avantajada negra, bem alta, dos olhos acesos feito brasa, de sisuda expressão de humor e adepta fervorosa do culto sincrético da macumba.

Dona Fátima não dava trela a seu ninguém, pois vivia a mentira de dizer para seu violento esposo, um dos presidiários mais perigosos do Estado da Paraíba, que trabalhava na casa de cinco “moças” cearenses. Durante o tempo em que passou com a gente, algumas passagens tornaram-se inesquecíveis.

1. Flagrada em casa, vestida com um meu calção, ela justificou-se dizendo que estava fazendo um aborto e o tinha vestido pela comodidade do manejo de uma sonda que estava usando. Inquirida se não estava cometendo um crime, ela respondeu: “Ah, é? E qual dos patrõezinhos vai querer criar o bruguelinho?”

2. Chamada atenção pelo sumiço temporário da faca da cozinha, ela justificou-se: “Fui eu que levei, e daí?! Taqui de volta. Tava precisando para um despacho numa encruzilhada que eu fui fazer perto daqui de casa.” 

3. Prestando atenção à gente, quando combinávamos com as namoradas para sair à noite, comentou: “Ô bando de menino besta, se fossem comigo à Zona, aí, sim, vocês iam ver o que é mulher!” 

4. Comunicada da dispensa de seus serviços, em nosso lar, ela não se conformou. Depois de insistirmos que não mais precisaríamos de seus préstimos profissionais e que ela tinha que ir embora, ela não arredou o pé de suas convicções e sentenciou: “Vou é porra!”

Mas, precisada de dinheiro, foi que Dona Fátima resolveu armar uma para filar um troco. Vendo-me impressionado com a minha assustadora magreza, ela convenceu-me de ir ao terreiro de macumba, pois sentia que eu padecia do encosto de um espírito ruim. Relutei um pouco, mas acabei cedendo à ideia quando Toinho disse que cometeria a amiga cortesia de me levar em seu descolado Chevrolet Opala Cupê amarelo. 

Tudo combinado, partimos ao terreiro, porém, no meio do caminho, o carro deu prego. Dona Fátima comentou: “É o tal do espírito querendo impedir a nossa ida.” Toinho abriu o capô do automóvel e verificou que era apenas um pequeno problema na rebimboca da parafuseta. Efetuado o acerto, o motor pegou e seguimos viagem. Ao chegarmos ao nosso destino, já tinha um bocado de gente me esperando. E não perderam tempo! Foram logo me benzendo, me dando passos, me envolvendo... Aí, rebolaram um litro de álcool no meio do terreiro e tocaram fogo! A Mãe de Santo me abraçou e, estrebuchando, disse que ia me salvar das garras da terrível e malamanhada entidade espiritual que estava me secando. Dona Fátima perguntou o que ela poderia fazer pelo patrãozinho e ela disse que receitaria um tratamento adequado para tal mal que me acometia. Findo nossos assuntos, de volta pra casa, assuntamos: 

- Meu patrãozinho, tenha fé, o senhor vai ficar bom. 
- Bom de que, Dona Fátima?
- Vai se livrar desse espírito perverso que tá só lhe secando... 
- Que papo é esse, Dona Fátima?
- E o senhor acha que essa sua magreza vem de onde? 
- Do encosto?
- Dele mesmo! Olha, meu patrãozinho tem a cara de abestaiado, mas, tá é ficando esperto... 
- É?
- Destá! E agora é só receber as graças da minha mãezinha e começar logo esse tratamento... 
- Caridosa a sua mãezinha, né?
- Ôxe, é muito caridosa e não cobra nada pelo bem que faz! Mas, como meu patrãozinho também é muito caridoso, vai dar um dinheirinho pra ela continuar livrando as pessoas do mal, tá certo?
- Comequié?!

Desconversado o assunto de ordem pecuniária, chegamos em casa e a partir daí, coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro, sumiu a chave da porta principal do apartamento. Depois, à noite, o registro geral de energia desligava e tome apagão! Como se não bastasse, vultos cortavam o corredor, topavam na porta do quarto, até que um dia, tive o susto maior: ao acordar, pressentindo a presença de alguém me vigiando, a um palmo dos meus olhos, uma peruca de cabeleira acaju estava sendo escovada na minha cara! Tomei um susto lascado, dei um pulo da rede, a assombração meteu o pé na carreira, mas deu para eu identificar que era uma negra alma. 

Perguntei à Dona Fátima sobre tal marmota e ela negou a sua autoria, dizendo que eu estava era lelé da cuca. 

- Tudo bem, Dona Fátima, vou resolver esse problema é lá no Ceará, onde tenho laços estreitos de amizade com Mãe Júlia, uma santa mãe-de-santo que é amiga da minha família! 

Vim à Fortaleza e passei um mês de férias. Quando voltei à João Pessoa, curiosa que só, Dona Fátima foi logo perguntando como eu estava e o que eu tinha feito no Ceará. Contra-atacando, para me defender, me vali de um criativo plano da minha imaginação. 

- Dona Fátima, estou bem demais! 
- Que ótimo. 
- Mãe Júlia me abençoou e disse que nenhum espírito maligno afligia a minha vida. 
- Ah, foi? Eu sempre achei isso... 
- Agora, eu procurei um amigo que é mestre da quimbanda e ele me garantiu que o caldeirão irá ferver para quem estiver desejando ou fazendo mal contra a minha pessoa! E os ditos-cujos são do mundo dos vivos! 
- E o meu patrãozinho acredita nessas coisas, é?
- Vai ser pei-bufo! Ele já se valeu de Pombagira, Exu Caveira, Belzebu, Príncipe dos Demônios, Senhor das Moscas e da pestilência... E dos demônios mais poderosos do inferno, que só se curvam perante Lúcifer! 
- Ôxente, e lá tem quem não queira bem ao meu patrãozinho! 
- (Tá pedindo penico, né?) [Pensei]

Pois é, daí, as assombrações sumiram do mapa!

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